A Menina do Casaco Camuflado

Francisco Marques
3 min readApr 5, 2020

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Esse era um daqueles dias em que o mundo gritava em sua cabeça. O efeito das drogas amortecia os pensamentos pessimistas e por um breve instante podia se deixar levar pela euforia do ópio e acreditar que estava tudo bem.

Era seis e dezoito de uma quinta-feira, o laranja do céu se confundia com o encardido dos muitos rostos que marchavam pelos portões da Central do Brasil. Encostada próximo ao balcão de uma lanchonete ela pedia para as pessoas que passavam que pagassem uma promoção para ela.

O casaco camuflado caia sobre os ombro desajeitado, o ex-dono com certeza era muito maior que aquela menina magrela. Olhando era difícil adivinhar sua idade, tinha o porte de uma menina de doze anos mas o olhar de uma mulher muito mais velha.

Os ouvidos já estavam amaciados para receber o “não”. Na maioria das vezes as pessoas nem a olhavam, apenas desviavam e seguiam como se ela fosse um poste ou uma lixeira a atrapalhar a passagem. Era um animal doente que ninguém queria chegar perto, como se sua desgraça fosse algo contagioso.

“Moça, você quer um lanche?” Perguntou uma senhora do lado dela. Não havia reparado quando ela se aproximou. “Sim, obrigada”. A senhora então pagou os dois lanches, um para ela e outro para a garota e chamou-a para sentar numa mesa estava desocupada perto dali.

Na verdade não queria sentar-se na mesa junto aquela senhora. Preferia apenas pegar a comida e ir para longe daquela gente, comer em paz. No entanto apenas seguiu a senhora e sentou-se.

Misturado as mastigadas do salgado de frango ela sentia o sabor dos olhares das pessoas que passavam. A senhora a sua frente rasgava o salgado com as pontas dos dedos e só então levava a boca: “Não posso me engasgar”, e deu um sorriso.

Não havia nenhum julgamento nos olhos daquela senhora. Talvez fosse uma avó que vira na garota parada a vitrine uma neta que mora distante e há muito tempo não a vê. Ou quem sabe nunca tivera filhos e caso os tivesse os netos teriam a idade da garota. Normalmente quando alguém pagava alguma coisa, simplesmente pagava e saia, quitava sua divida com Deus no sentido de ajudar aos necessitados e iam embora. Ninguém quer ser visto ao lado de uma menina suja. Aquela senhora era diferente.

Ela conversava e fazia perguntas como se já conhecesse a menina há tempo. Para a senhora, a menina do casaco camuflado era uma moça interessante e discreta. Percebeu que a garota não ficava olhando sua perna mecânica que aparecia por baixo do vestido ou nas manchas de pele que tinha no rosto.

Quando terminaram o lanche ainda conversaram por algum minutos, depois despediram-se com um abraço desajeitado. Então pegou a mochila e os malabares e seguiu para as ruas, amanhã seria um outro dia.

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Francisco Marques
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Written by Francisco Marques

Engenheiro, cronista e apaixonado por viagens, histórias, gente e principalmente juntar isso tudo no papel.

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