OLHOS DE CAFÉ
A fila do embarque já havia se formado. Eu carregava o “Ensaio sobre a cegueira” nas mãos, livro que ganhei de presente de aniversário da minha irmã há meses e que havia prometido a mim mesmo que iria aproveitar alguns dias das férias para lê-lo. Promessas. Havia prometido muita coisa nos últimos meses, e a maioria consistia em retomadas: Voltar a tocar violão, voltar a escrever, voltar a me alimentar melhor… Voltar.
Enquanto a fila de embarque se arrastava eu me permitia rememorar os dias em Fortaleza e fazer planos para os dias que ainda me restavam de férias. Estava quase na metade delas. Havia encaixado uma breve participação em um seminário sobre materiais em João Pessoa (Isso era importante para meu mestrado) depois seguiria para Rio e Blumenau.
Eu era um dos últimos da fila. Um ônibus iria nos levar até ao avião estacionado na pista. Quando subi no ônibus já não havia mais lugares disponíveis para sentar, fiquei em pé ao lado de um senhor de óculos de aro redondo. A capa do livro chamou a atenção dele. “Esta gostando?”. Demorei um tempo para entender que estava falando comigo e que estava se referindo ao livro. “Sim, mas ainda estou no começo”. Respondi.
Enquanto o ônibus aguardava para sair, começamos a conversar. Descobri que ele era um diplomata que estava indo para João Pessoa participar de uma banca de defesa da tese de doutorado em relações internacionais na UFPB. Descobri também que ele havia conhecido Saramago pessoalmente.
Esperamos por mais de vinte minutos e não saímos do lugar. Algum tempo depois fomos avisados que deveríamos voltar para a sala de embarque. Pelo meu relógio o avião já devia estar decolando. Então veio o anuncio que o voo de Fortaleza para João Pessoa seria cancelado. Nesse momento todos tinham alguma emergência para resolver na outra cidade, e a ideia de um voo cancelado era absurda. Iam e viam em revezamentos mal sucedidos tentar arrancar explicações e desabafar seus descontentamentos.
Eu me maravilhava com o fato de todos naquele saguão, mesmo sem saber o nome um do outro, eram muito próximos. Acontecimentos desses tipos funcionam como arrombadores de portas, as cascas do medo do primeiro contato caem e todos se sentem a vontade para contar para quem esta ao lado que vai se atrasar para uma prova, que não pode perder o concurso de amanhã cedo, que a reunião do dia seguinte não pode ser adiada.
Eu me mantinha calmo. Iria perder somente um dia de congresso, minha apresentação seria só dois dias depois. Quando anunciaram as opções para seguir viagem por outro trecho ou permanecer mais um dia em Fortaleza e pegar o voo do dia seguinte a tarde, eu não tive muita dificuldade na escolha.
Uma moça ao lado havia comentado que iria perder aula na faculdade. Passara aquela segunda-feira em Fortaleza a trabalho, viajara no domingo a noite para participar de uma reunião na segunda de manhã e deveria voltar no final da tarde. Eu comentei com ela sobre minha estadia em Fortaleza e que estava viajando para um congresso de engenharia.
Enquanto esperávamos a equipe da companhia aérea íamos conversando. Naquele momento eu não lembrava mais o que estava esperando. Nossa conversa caminhava de um assunto para outro, e as historias apareciam, e os sorrisos se revelavam. Eu tinha o sorriso de engolir o mundo, e ela a risada de menina que apronta. Àquela altura ela já havia decidido que iria ligar para o chefe dela e contar que não teria como trabalhar amanhã porque o próximo voo seria somente na tarde do dia seguinte, e que passaria a noite em Fortaleza. Estávamos embebidos na nossa amizade de infância recém inventada quando uma moça da companhia aérea nos abordou e perguntou se queríamos ficar para pegar o voo do dia seguinte. Respondemos que sim e ela começou a preencher um formulário que nos entregou em seguida. “O Carro do hotel vai vir pegar vocês em 15 minutos”. E saiu para dar atenção aos outros passageiros.
No papel estava escrito “quarto duplo”.
“Colocaram a gente no mesmo quarto”. Eu falei. Só depois veio a mente que os dois responderam que sim quando moça da empresa aérea perguntou se estávamos juntos.
Ela disse que por ela não teria problema. Daria tempo de reverter caso fosse necessário. Mas não teria problema, como ela disse.
Era um balançado diferente. Mas eu gostava. Há menos de duas horas eu tentava forçar concentração num livro e agora estava prestes a dividir o quarto com alguém que eu acabara de conhecer. Não havia medo. Eu sentia isso. Ela exalava confiança e isso me fazia feliz. Não eram estranhos que tiveram o voo cancelado e por coincidência iriam ficar no mesmo quarto. Eram confidentes, que se reencontraram depois de alguns anos sem se verem. Eu tinha sede dela, e sentia na vibração do ar que ela estava também disposta a me beber em grandes goles.
Para o motorista que foi nos buscar no aeroporto, para os funcionários do hotel, ou para qualquer pessoa que passasse e nos visse nós éramos um casal vibrante, e que exalavam intimidade que só os anos de convivência podem conferir.
Olhos de cor de café. E eu conseguia me enxergar neles. Isso foi depois da pausa de um assunto, e não sei quanto tempo durou. Deitados na cama eu mergulhava para dentro dela e me via.
Acho que tudo que esperamos nessa vida é nos encontrar no olhar de alguém. Naquele momento todo o mundo cabia ali, no entorno da pupila, nos riscos e impressões da íris, no segundo de um cílio.
Continuamos a descortinar nossos mundos, no jantar, na festinha a noite e na manhã seguinte. E então seguimos para o ponto de partida. Viajamos na mesma fileira. Mas nesse momento a conversa já tinha um passo mais morno. Quando chegamos a João Pessoa, trocamos contato e depois nos despedimos. Ela iria para aula e eu deveria ir para o hotel me preparar para o congresso no dia seguinte.
Foi algo que eu nunca consegui compreender muito. Quando voltei para minha cidade as conversas por mensagem ou telefone rareavam a cada dia que passava até secarem de vez. Curioso ser que habitou aquele corpo por somente um dia e me deixou aguado com sede de me afogar em um lago cor de café.